Ei pai, como estão as coisas?

Desculpa a demora pra fazer isso.

Não vou dizer que eu queria fazer isso, se eu pudesse evitar esse momento pelo resto da vida, acredite, eu evitaria. Não vai ser fácil, na verdade eu não faço ideia de como vai ser, mas preciso tentar. Dessa vez não é por mim. Dessa vez é por você.

A gente não conversava muito, mas as coisas claramente começaram a se desfazer nos últimos anos. As olhadas face a face diminuíram até o ponto de eu não conseguir mais lembrar do seu rosto. As conversas animadas se tornaram diálogos secos até se tornarem uma mera troca de palavras entre dois estranhos. Na verdade, no fim, nem palavras trocávamos. Era só silêncio.

Era cômodo pra mim, porque por muito tempo as coisas foram tão difíceis que tudo que eu pudesse fazer para a dor passar eu faria. E eu fiz.

Não é nem de longe a explicação que você merece, mas é a verdade. Eu estava cansada, com medo e, de certa forma, sozinha. A gente se resguardava em silêncio e remoíamos nossas dores sozinhos. Todos sentíamos dor, mas não entendiamos nem a nossa própria dor, como acolher a dor do outro?

Eu sinto por ter desistido do senhor. E aqui eu acho necessário explicar que eu sinto por ter desistido do senhor e não do homem que eu cuidava, que gritava, que estava perdido. Sei que não é legal dizer isso, a final de contas esse homem precisava de ajuda e dizer que não me arrependo de ter desistido dele é algo bem ruim. Mas aquele homem precisou de ajuda em um momento que todos nós precisávamos e quando dois feridos tentam se curar, acaba que a dor do outro machuca ainda mais sua ferida. Era o que fazíamos, usávamos nossa dor para ferir ainda mais a ferida do outro. Mas deixe-me voltar ao viés inicial. Em algum momento o senhor deixou que o homem bom, o marido gentil e o pai amável dê-se lugar a um monstro. Eu não te julgo, porque eu não faço ideia do que o senhor passou para que isso acontecesse, mas aconteceu e só posso escrever sobre como isso nos afetou.

Pai, eu uso uma lembrança nossa como patrono. Patrono é um feitiço que afasta a escuridão e aquilo que rouba o que temos de melhor, e para conjurar esse feitiço tão poderoso é necessário uma lembrança muito forte e a minha lembrança é de quando caímos de bicicleta e fui parar no hospital. Aquele médico de mão frias costurou a minha pele e a lembrança não é das mais belas, mas depois, quando recebi alta e você me carregou no colo, tudo ficou melhor. Eu vi sua culpa por ter deixado aquilo acontecer, mas hoje tô aqui para agradecer por ter acontecido. O picolé que tomei depois fez daquele dia o dia mais feliz da minha vida, a lembrança mais forte da minha vida. Ela me dá forças para afastar a dor, para diminuir a tristeza. Ela acalentava meu coração quando o homem que eu cuidava tornava tudo difícil.

Tem coisas boas pai. Tem lembranças boas, de dias felizes, de noites tranquilas e de sono fácil. As vezes elas quase desaparecem, mas elas existem e faz todo o tormento ser menor. Quero agradecer por uma infância feliz. Quero te agradecer por me fazer sentir falta de um tempo que foi bom. Quero dizer que foi bom pai! Que nem tudo foi só dor. Se eu sinto falta é porque uma parte de mim já não vive mais, ela tá contigo e o senhor não está comigo.

Rezo para que esteja bem, rezo para que a dor tenha passado, rezo para que o tormento tenha passado e que o homem bom tenha retornado ao lar. Eu rezo para o seu melhor pai. Doía viver, né? Respirar doía, comer doía, viver doía. O senhor foi muito guerreiro de aguentar tanto tempo, porque hoje sabendo como é, sei que você foi forte, mais forte do que se quer poderíamos imaginar. Espero que onde quer que esteja a dor tenha passado.

Eu me formei. Sou engenheira agora e também faço mestrado. Sabíamos que não tenho perfil para a indústria, então vou ficar na academia mesmo. Eu amo pesquisar e quero dar o meu melhor, ajudar pessoas a serem melhores, a fazerem o mundo melhor e fazer isso do conforto da minha cama seria muito bom.

Você não estava lá quando a dor virou alívio, você não estava lá quando as mãos que me prendiam me soltaram. Você não estava lá, como eu sabia que não estaria, mas tudo bem, nada apaga seu trabalho. Eu cheguei lá, porque você me ajudou a chegar lá. E eu queria dizer que sou muito grata por me ajudar a realizar meu sonho. Por mesmo com dor me ajudar a ser quem eu queria.

As vezes eu me questiono se eu estivesse acordada naquele dia se as coisas seriam diferentes. Eu não sei a resposta, provavelmente nunca vou saber, mas se de alguma forma pudesse ter feito diferença eu peço desculpas por ter fechado meus olhos.

Peço desculpas pela mão que larguei.

Peço desculpas pelo olhar que desviei.

Peço desculpas pela voz que silenciei.

Peço desculpas pela ferida que feri.

Pela mão que não estendi.

Desculpa pai por permite que você fosse tão cedo. Tudo que consigo fazer é rezar para que esteja bem. E acredite, de minha parte, não há dívidas. O senhor me deu amor e me deu dor. Eu escolho guardar o amor e o resto eu entrego para que o tempo leve. Não há magoas, elas se foram junto com os tormentos.

Espero um dia me lembrar dessas coisas com saudade. Sem dor, só saudade mesmo, sabe?

E hoje escrevendo isso eu entendo que a mulher que sou hoje é graças a todas as experiências que tive e que se estou aqui é graças ao senhor. Bem ou mal, essa é quem sou e posso dizer, com certeza, que o senhor me fez engenheira e vai me torna mestre e o que eu fizer de bem pelo mundo tem muito da sua digital.

Seu livro terminou, mas sua história deixou spin off.

Com todo meu amor,

Zane.

P.S.: Ainda te amo muito

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