Inventei você?

“Antes de ir para longe, quero passar um tempo contigo…”

“… me senti eu mesmo, quase conectado…”

Quando era criança ela se sentava na cama ou no sofá e via as gotas de chuvas escorrerem pela janela. Sentia o frio e o calor, ouvia as músicas e chorava porque parecia que suas veias vibravam no mesmo timbre das canções. Pacientemente lia livros, os relia e vivia histórias.

Para um espectador desatento, ela não passava de uma criança solitária. Uma criança com irmãos mais velhos que há muito já não brincavam de bolinha de gude e de faz de conta. Solitária e sem amigos, apegado aos livros como uma forma de escapar da realidade solitária. Mas a verdade é que ela nunca esteve sozinha. Nos seus devaneios ela pensava no aqui, no agora, no antes e no durante, o passado a intrigava o futuro a excitava com as possibilidades, os livros a transportavam para outros mundos, a apresentava a outros seres e a libertavam de qualquer prisão física que a prendesse. E sobre os amigos, bem, o mundo podia não ver, mas ela tinha um amigo e falava com ele o tempo todo. Ele ia onde ela fosse e estava ao seu lado dia e noite, compartilhando dos risos e das tristezas.

Mas o mundo não o via.

E o tempo a sobrecarregou de responsabilidade e a fez esquecer do seu amigo.

O tempo passou, a menina cresceu e entre as amizades físicas, havia dois seres que sabiam de todo o seu amor e de todas as suas dores, compartilhava tudo e nunca a deixou na mão. O mundo não os via, mas a menina sentia a presença deles. Os tratava como iguais, como amigos inestimáveis e reais.

Mas o mundo não os via.

O mundo não entendia como ela podia tratá-los como reais.

O mundo não aceitava aquilo.

E o mundo a fez crer que não era normal. Que não era saudável. Que não era real.

E ela deixou para trás quem nunca deixou de estar ao seu lado. Ela ignorou seus confidentes. Ela sorriu para o mundo enquanto se quebrava por dentro ao ignorar o que e “quem” era importante. Ela se quebrou tanto que se esqueceu de ver o mundo através do vidro molhado da janela.

E um dia ela conheceu alguém.

Primeiro um conhecido.

Ele pirraçava ela. Ria do seu chapéu e não perdia uma oportunidade de chamá-la de pagodeira do rock.

Ele se aproximou. Constantemente a abordava, ele passou a estar sempre com ela. Nos bons e nos maus momentos.

E o conhecido tornou-se seu amigo.

E depois seu confidente.

E depois seu refugiu.

Sua fortaleza.

Os dias ruins não eram mais tão ruins quando ele aparecia a noite com seu humor e suas cronicas. Os dias bons eram ainda melhores quando a curiosidade dele a fazia contar tudo e dias chuvosos passaram a ter, além da companhia dos livros, seu fiel escudeiro. Ela não estava sozinha.

Tiveram bons e maus momentos. Compartilharam sonhos, músicas e medos. Ele se apaixonava pela vida e ela por ele. Os dois deitavam separados vislumbrando um mesmo céu, tentando ouvir as batidas do coração um do outro. Tentando suprimir o medo e a dor do outro. Servindo de porto para o outro.

Mas o mundo não o via.

Ela falava sobre ele, mas ninguém jamais o viu pessoalmente, nem ouviu sua voz. E o que pareceu um sonho aos poucos se tornou um pesadelo.

Ele era real?

De carne e osso?

Ela o havia inventado.

Parecia tão real.

Mas todos os outros também eram.

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